“Dizem que sou louca por pensar assim
Se sou muito louca por eu ser feliz
Mas louco é quem me diz que não é feliz
Não é feliz”
(Balada do Louco – Rita Lee)Se sou muito louca por eu ser feliz
Mas louco é quem me diz que não é feliz
Não é feliz”
Ao me deparar com Poppy pela primeira vez tive a inquietante sensação de estar diante de alguém irritantemente feliz, efusiva ao extremo, o que foi se transformando no decorrer do filme. A personagem conseguiu me cativar aos poucos, extraindo-me sorrisos tímidos que foram gradativamente se tornando gratuitos. Poppy, ou Pauline, é mostrada como uma alegoria para a Felicidade, o que é pretensioso de se dizer, pois a felicidade não é algo que se define. No entanto, é fácil de perceber quando vemos alguém feliz, e “ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade” disse Carlos Drummond de Andrade certa vez. Assim, Poppy com seus sorrisos e ironias saudáveis vai se relacionando com outros personagens que apresentam características particulares como a sensatez, o pessimismo, a descrença e tentando cativá-los também com sua alegria.
No início do filme vemos Poppy, uma garota com roupas um tanto excêntricas e com um ar etéreo no rosto, entrar numa livraria e parar diante de um livro, “O Caminho para a Realidade”, e recusá-lo dizendo “Não quero ir pra lá” e posteriormente começar a ler trechos de outro, chamado “O Reino do Sol”. Aqui percebemos que a Felicidade não exige um estado de Realidade, que é preciso ter um pouco de fantasia para se deliciar num mundo onde o real pode ser feio e sem graça. Após sair da livraria ela percebe que sua bicicleta foi roubada, e ao contrário do que muitos de nós faríamos (pronunciar nomes tão feios e deixar a raiva nos consumir) ela apenas solta uma de suas ironias (“E eu nem tive a chance de me despedir dela”) e tira da situação um objetivo novo, o qual o filme se desenrola, Poppy decide que está na hora de aprender a dirigir.
Seu instrutor de direção, Scott é de um humor completamente oposto, sério, arrogante e mal-humorado. Enxerga as peripécias de Poppy como bobagens, brincadeiras estúpidas que não são apropriadas para ela. Com o desenrolar das aulas, Scott passa a questionar Poppy também, como se ela estivesse ganhando a confiança dele aos poucos. Nas muitas conversas que se seguem, ele diz que acordou para a vida há muito tempo e questiona Poppy “Olhe a sua volta, o que você vê? Você vê felicidade? Vê uma política de levar felicidade as pessoas? Não. Não. Você vê ignorância e medo”, aqui vemos a lente pela qual Scott enxerga o mundo, com descrença, criando muros a sua volta que o impedem de aproveitar as pequenas coisas. Poppy apenas lança um olhar de pena e ao sair do carro lhe dá um conselho: “Alegre-se!”. Apesar do conselho dado, Poppy fica pensativa sobre o que ouviu, mas não se importa tanto assim.
Mais adiante, temos uma sequência bastante metafórica do filme, ainda pensativa Poppy desvia de seu caminho e mergulha em uma atmosfera diferente, encontrando um mendigo, um louco. A alegoria aqui explícita é o encontro entre a Felicidade e a Loucura, Leigh consegue mostrar um limiar entre os dois, o quão próximo um pode estar do outro e a parte cômica, um entende o outro. Na letra da música “Balada do louco” de Rita Lee, citada no início do texto, é possível compreender essa relação. Ele deixa claro que os dois têm muito em comum, mas são distintos, fato mostrado quando Poppy e o louco se despedem seguindo por caminhos opostos.
Ao visitar sua irmã, Helen, Poppy nos apresenta outra personagem que é extremamente ligada à realidade. A sensatez e seriedade de Helen conseguem ser desconcertante, o que é percebido na expressão de seu marido. Helen diz a Poppy que ela precisa ver a vida com seriedade e que quer vê-la feliz. Poppy rebate dizendo que é feliz e que adora seu estado de liberdade. Isso irrita sua irmã, que apesar de seguir todas as regras se mostra insegura em relação a seu futuro, como se a felicidade de Poppy fosse algo insustentável para ela.
Em um trecho do filme, Poppy conhece um cara com um humor leve como o seu e tão otimista quanto. Eles se relacionam o que provoca ciúmes em Scott que deixa claro suas emoções. Neste momento há um clímax no filme, que é a discussão entre Poppy e Scott. Voltamos a idéia da alegoria se analisarmos o discurso de Scott, que em fúria diz: “Você quer que o mundo gire a sua volta, você me seduziu, você me envolveu e mentiu pra mim. Por quê? Porque você quer ser adorada”. Como se ele, que antes não sabia o que era a felicidade, mas almejasse por ela, e ao conhecê-la e se envolver com ela, a visse escapulir por suas mãos. A sensação de perder antes mesmo de ganhar. Afinal é isso que todos queremos, desejamos a felicidade, nossas ações são em prol dela, nos deixamos seduzir por ela, mas sofremos quando ela acaba, não entendemos que a felicidade é um estado passageiro. Poppy apenas responde: “Eu só queria te fazer feliz”.
Poppy no fundo é apenas um ser humano como todos os outros, mas com o diferencial de aceitar a felicidade como uma possibilidade de estado humano, como nos disse Eduardo Valente. Em alguns poucos momentos do filme, presenciamos situações as quais certamente nos deixariam tristes, mas Poppy escolheu pensar, vendo que poderia se deixar tombar ou poderia escolher sorrir e assim o fez. Por fim, saímos da sala de cinema sem saber definir o que é a felicidade, mas com a vontade de continuar buscá-la, sendo cativados pela felicidade da personagem com um sorriso tímido no rosto.
O filme segue uma estrutura clássica, retratando uma suavidade de apresentar os fatos e cenários simples e comuns. No entanto, Mike Leigh brinca nesse processo de construção utilizando os personagens, principalmente Poppy e Scott que são extremos, como se fizesse uma crítica discreta ao naturalismo comum. Ele nos faz levantar dúvidas sobre o que se passa na tela, não é apenas uma realidade estática e imutável. Nos faz pensar a respeito da felicidade, o quão atingível ela pode ser, se queremos admiti-la em nossas vidas ou declarar que de fato não a temos. A fotografia do filme foi tão bem colocada como a trilha, que acentua as emoções ao longo das cenas.
Um comentário:
Ah sim, lá no finalzinho vc falou o q realmente chamou minha atenção: a trilha sonora. A impressão q tive foi de estar em um lugar familiar e aconchegante cada vez q a musiquinha tocava e víamos as tomadas da cidade de cima. Confesso q tb não me deixei levar logo de cara por Poppy q se mostrou segura sobre tudo e superficial. Mas qdo ela se depara com o mendigo - um q de ingenuidade de sua parte, vale ressaltar - a senti, naquele momento, se descobrindo e chegando à conclusão de q ela esteve o tempo todo certa à respeito de sua "filosofia de vida". Ela não apenas se depara com a loucura alheia, mas tb com a realidade de si própria. O clímax do filme, ao meu ver, foi a cena com Scott. E no final nos perguntamos: "Qtas vezes fazemos algo ou deixamos de fazer por conta de nossas conclusões? Qtas vezes somos levados pela nossa imaginação ao mundo só nosso?". Poppy errou? Não podemos afirmar nada. Apenas q as pessoas passam pela gente e de alguma forma nós iremos alterar o mundo delas e vice-versa.
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